Ocupar espaços de poder sendo mulher negra é, antes de tudo, um ato de continuidade. É seguir a trilha aberta por aquelas que vieram antes de nós — muitas vezes em silêncio, mas com firmeza. É transformar a dor ancestral em potência coletiva. Quando uma mulher negra entra em um espaço de decisão, ela não entra sozinha: carrega sua história, sua comunidade e a memória dos seus.
Em 2019, a vereadora Renata Souza, mulher negra, favelada e doutora em comunicação e cultura, foi ignorada por seguranças ao tentar entrar na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde ela mesma exercia mandato. O motivo? O racismo estrutural. Seu corpo negro não foi reconhecido como legítimo naquele espaço de poder.
Esse episódio é um entre tantos que mostram como mulheres negras enfrentam obstáculos múltiplos: o racismo, o machismo e a elitização dos espaços decisórios. O problema não é a falta de capacidade, mas as barreiras estruturais e simbólicas que tentam nos excluir.
Mulheres negras sempre estiveram na liderança, mas fora dos holofotes. Foram elas que sustentaram comunidades, lideraram quilombos, fundaram escolas e abriram caminhos. No entanto, quando se trata dos espaços de poder institucional — na política, na universidade, nos cargos de direção — o acesso continua restrito.
Falo de um lugar concreto: sou tataraneta de Domingos e Benedita, pessoas negras escravizadas na antiga Vila Nova de Castro, interior do Paraná. O sangue deles corre em minhas veias como herança de resistência e dignidade. A história da minha família é marcada pela luta por liberdade, por terra, por educação — e pela negação sistemática dos nossos direitos. Mas também é marcada por algo mais forte: a decisão de não desistir.
Estar hoje em um espaço institucional da estrutura de governo, no estado do Paraná, colaborando com a construção de políticas públicas de Igualdade Racial e falando em nome de nossas comunidades, é um ato político que honra essa ancestralidade. É também um lembrete de que cada passo que damos abre caminho para outras mulheres negras seguirem confiantes.
A pesquisadora Djamila Ribeiro afirma: “A ausência de mulheres negras nos espaços de decisão não é casual, é estrutural. A sociedade foi organizada para que esse lugar não nos pertencesse” (RIBEIRO, 2017). E Sueli Carneiro complementa: “Lutar pelo conhecimento é uma forma de resistência” (CARNEIRO, 2003).
Como mudar esse cenário?
- Formação e Consciência Política: O acesso à educação crítica fortalece e sustenta a
atuação nos espaços institucionais. - Rede de Apoio: Nenhuma de nós deve caminhar sozinha. Juntas somos mais fortes.
- Autenticidade como Força: Nossos corpos e histórias são parte da transformação.
- Mentoria e Representatividade: Ser ponte para outras é um compromisso político com o
futuro.
Quando uma mulher negra ocupa um espaço de poder, leva com ela todo um território de
vozes silenciadas. E quando permanece, abre passagem para que muitas outras entrem.
Eu ocupo, porque Domingos e Benedita resistiram. Eu falo, porque muitas foram
silenciadas. Eu sigo, porque nossas meninas negras precisam saber que elas também
pertencem.
Referências:
- RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
- CARNEIRO, Sueli. “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”. Tese
de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2003. - GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Lugar de mulher é onde
ela quiser, São Paulo: Boitempo, 2020. - DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.